Bairro de Santo Antônio

Porto das Canoas/Praça Joaquim Nabuco

As cidades de Recife e Olinda, desde o século XVI, foram marcadas pela presença de muitos portos de canoas, destinados ao atracamento dessas embarcações, consideradas o principal meio de transporte da época. Destaca-se nesse texto, no entanto, o porto localizado na Rua Nova, também chamado de “porto do Carmo Velho”. Este tem sua origem no século XVIII, por volta de 1787. Entre as iconografias que apresentam o cotidiano do Recife, pode-se observar uma imagem, de 1855, de Augusto Stahl, da antiga Casa de Detenção, hoje Casa da Cultura, que retrata esse local. Assim como os outros portos, é considerado um lugar de trabalho de negros escravizados e, por isso, um lugar de memória, pois esses espaços faziam parte do cotidiano da população negra nesse período.

 As canoas marcaram a maneira de viver e a forma como a cidade de Recife se organizou ao longo dos séculos. Conforme Evaldo Cabral de Mello, “(…) a expansão do Recife dependeu do transporte fluvial e, especialmente, a canoa indígena. Desde o século XVI, ela assegurava as comunicações entre o Recife e Olinda, de um lado, e entre o Recife e os engenhos da Várzea do Capibaribe, de outro” (MELLO, 1978, p. 71). Cabral de Mello afirma, também, que a falta de estradas e a distribuição das áreas ocupadas da cidade, possibilitaram a dependência por esse transporte, que era tão forte que algumas construções em Recife foram planejadas em razão da sua localização favorável ao uso de canoas, ou seja, voltada para os rios, mostrando o seu valor na época.

Dessa forma, é possível compreender a importância da profissão de canoeiro. Segundo Marcus Carvalho, existiam muitos homens habilitados para o trabalho, principalmente, homens negros e pardos que trabalhavam no transporte de água, produtos e pessoas. A maioria desses trabalhadores eram negros escravizados, em razão disso, Carvalho aponta, que “Os escravos canoeiros eram violentamente reprimidos e vigiados com especial rigor. Não apenas pelo valor que tinham, mas também pela mobilidade inerente à sua ocupação, que certamente facilitava a fuga” (CARVALHO, 1998, p.92). Para o autor, apesar dessa vigilância, ser um escravo canoeiro trazia algumas oportunidades, por exemplo, era possível circular pela cidade e entrar em contato com outras pessoas, permitindo a criação de uma rede de relacionamentos e de solidariedade entre a população negra, que procurava se ajudar de várias formas, além de ser uma das poucas profissões onde o escravo poderia ganhar algum dinheiro com o intuito de comprar sua liberdade (CARVALHO, 2010, p. 38).

É importante afirmar que boa parte dos homens que trabalhavam nessa profissão eram escravos, apesar da presença de negros livres e pardos. Como o consumo de água dependia desse trabalho, muitas famílias abastadas decidiam comprar escravos que possuíam experiência com canoas para realizar esse serviço específico. Isso ocorria, principalmente, devido alto preço cobrado pelos canoeiros profissionais e, também, porque essas famílias desejavam ter acesso a uma água mais limpa, que fosse transportada em sua própria canoa. Por isso, nessa época, era comum os avisos em jornais da venda de canoas e escravos, como se fossem um único produto.

Conforme Cabral de Mello, a profissão de canoeiro era bastante organizada e chegou a contar com uma irmandade religiosa, que se reunia na Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Canoeiros, localizada perto de um dos portos das canoas da época, o porto do antigo bairro de São Frei Pedro Gonçalves, hoje conhecido como bairro do Recife. Além disso, eles também se organizavam conforme suas posições no grupo, gerando uma hierarquia entre eles.

É válido ressaltar, segundo Carvalho, que “A importância dos transportes fluviais entre o período colonial e o século dezenove pode ser facilmente observada na iconografia recifense. Era o rio Capibaribe que ligava os três bairros principais da cidade entre si, e com os subúrbios. Era atravessando o ponto de encontro do Capibaribe e do Beberibe que se ia para Olinda. Isso tudo permitiu uma integração dos canoeiros à paisagem urbana. Enquanto durou a escravidão, aparecem negros e pardos levando canoas pelo rio nas gravuras feitas da cidade. Quando Schlappritz desenhou o Recife na década de 1860, já havia mais uma ponte ligando o bairro do Recife a Santo Antônio, luz a gás nas ruas e trem cruzando o interior. Mas as canoas estão lá, onipresentes – simples no ir e vir da rotina dos transportes urbanos, ou enfeitadíssimas em dias de festa, como durante a visita de Dom Pedro II à cidade em 1859.” (CARVALHO, 2010, p. 39).

Por fim, pode-se afirmar, que o porto das canoas era um espaço de encontro de negros, que desempenhavam, ou não, a mesma profissão. Por exemplo, era comum o contato entre os canoeiros e outras categorias profissionais, como a das vendeiras, conforme Maciel Silva, esse encontro possibilitava tentativas de fuga (SILVA, p. 2011, 73). Nesse sentido, é importante ressaltar o Porto das Canoas como lugar de memória da escravidão em Recife, pois a partir desse local, conforme Costa, podemos pensar o “(…) cotidiano como espaços construídos pelos escravos na execução de suas tarefas, alternando momentos de pleno trabalho, lazer e ociosidade” (COSTA, 2009, p. 74). Ou seja, nesse espaço os homens negros escravizados, e os trabalhadores livres negros, construíam relações e viviam o seu dia-a-dia, através do trabalho e das relações formadas. Por meio dos portos das canoas, é possível pensar como se dava a circulação dessa parte da população na cidade e como era a organização do trabalho escravo urbano e das relações desses canoeiros com os outros profissionais, seu local de trabalho e a sua organização como um grupo.

Esse lugar de memória sofreu transformações ao longo dos anos, se tornando também um local de representação da luta abolicionista de Recife, pois em 1915, foi inaugurado um monumento em homenagem ao líder abolicionista, Joaquim Nabuco. Dessa forma, a denominada Praça Joaquim Nabuco representa também a história do movimento abolicionista.

 

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Imagens: Fundação Joaquim Nabuco

Referências:

CARVALHO, Marcus J. M. Os caminhos do rio: negros canoeiros no Recife na primeira metade do século XIX. Afro-Ásia (UFBA), Salvador, v. 19-20, n.1, p. 75-93, 1998.

Carvalho, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822 – 1850. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2º Ed., 2010.

CARVALHO, Marcus J. M. De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no Recife, 1822-1850. Afro-Ásia, n. 30, 2003.

COSTA, Alba H. D. de Araújo. E trovejou o cacete?: cotidiano, resistência e criminalidade escrava (Recife, 1871-1888). Dissertação de Mestrado em História – Universidade Federal de Pernambuco, 2009.

MELLO, Evaldo Cabral de. Canoas do Recife: Um Estudo de Microhistória Urbana. In Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Publicação feita em Convênio com o Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura. Vol. L. Recife, 1978. Pág. 67 – 103.

ROCHA, Tadeu. Roteiros do Recife (Olinda e Guararapes). 4. ed. [Recife: s. n.], 1970.

SILVA, Maciel Henrique. Pretas de honra: vida e trabalho de domésticas e vendedoras no Recife do século XIX (1840-1870). EDUFPE, 2011.